A história que eu vou contar aqui não é nenhuma novidade para muitos trilheiros acostumados a caminhar por trilhas na mata ou mesmo numa calçada urbana. Entretanto, pouco se fala desses amigos que por diversas vezes encontramos pelo caminho e que de livre e espontânea vontade nos acompanham por horas a fio e depois, ao chegarmos são e salvos e em ótima companhia, eles retornam sozinhos nos deixando com saudades.
Quando eles aparecem, a segurança aumenta consideravelmente; pois eles ouvem muito bem, tem noção do que se passa no ar a quilômetros de distância e são capazes de enxergar o que há por debaixo das folhas. Alguns ficam tão amigos, que acabam acompanhando para sempre quem os aceitou. Eu tive o prazer de caminhar por diversas vezes com esses amigos e confesso, foram as caminhadas mais divertidas que já fiz. Porém, teve um dia que a coisa foi diferente e se não fosse um anjo da guarda desses, acho que eu poderia ter sofrido algum acidente sério.
Tudo começou quando cheguei a Mangaratiba e vi a barca que eu ia pegar para o Abraão a menos de 50 metros do cais indo na direção da Ilha Grande. Deu vontade de pular na água e nadar para alcançá-la. Desapontado, olhei em volta para ver se via algum barco que pudesse estar indo para o mesmo destino. Por sorte, o comandante de uma pequena traineira disse que em algumas horas estaria indo para o Saco do Céu. Minha alegria voltou. Relaxei e aproveitei para andar pela cidade, conhecendo seu casario e monumentos do tempo do Império. É uma pena, mas a maioria dos turistas que fervilham na praça em frente ao cais não faz idéia dos tesouros que esta singela cidade abriga. Um dia contarei como era acampar na deserta praia do Saí, quando ainda não existia a Rio Santos e a melhor condução para se chegar era de “Macaquinho”. Um pitoresco trem de madeira que ia costeando o litoral desde Santa Cruz (subúrbio do Rio de Janeiro) até Mangaratiba.
Chocante o danado do trenzinho!!! Tinha primeira classe, segunda e a econômica, que era a melhor de todas. Ao chegarmos a Saí, antes mesmo do trem parar na estação, jogávamos as mochilas nas dunas e pulávamos atrás delas para desespero dos lagartos que saiam desembalados pela vegetação rasteira. Depois de cruzarmos uma espécie de deserto, com vários oásis de arbustos, cactos e lagos triscando de camarões, chegávamos à praia, onde desembocava um imenso rio. A nossa frente e bem próxima (dava para ir andando na maré baixa), uma ilha deserta, com uma praia de conchinhas e algumas árvores frutíferas perdidas na mata. Vou tentar localizar as fotos dessas aventuras e um dia eu conto como Mangaratiba marcou a minha vida.
Como eu estava dizendo - feliz da vida por ter encontrado um barco, sai pela cidade sem direção enquanto passava o tempo. Em algum momento cheguei a pensar em seguir até Angra e apanhar a barca da tarde. Pois apesar de o barco me levar para a Ilha, do Saco do Céu ao Abraão implicaria em ter de fazer uma caminhada de quase duas horas; o que seria até agradável, sem sombra de dúvidas, o problema é que isso não tinha hora para acontecer.
- “Depois do almoço”. Disse-me o barqueiro.
Relaxei e fui tomar um café completo num bar antigo em frente à praça principal. Enquanto isso, aproveitei para organizar o material do trabalho de pesquisa sobre A Pesca Predatória na Baia da Ilha Grande, que eu e mais um grupo de amigos do curso de pesca estávamos empenhados a concluir. Naquela época, existia na Ilha dezenas de indústrias de pescado que processavam por dia toneladas de sardinhas. Com as redes ficando cada vez maiores e em maior número, elas acabaram se extinguindo, o que fez naufragar as fábricas levando junto os artesões do mar.
Avisei ao barqueiro que eu estava na praça, caso ele precisasse me localizar. Por volta das duas horas da tarde, um vento súbito fez voar pelo jardim as folhas de papel e algumas eu até cheguei a perder. Nisso, chegou apressado o barqueiro me chamando para partirmos logo, pois estava previsto um temporal para as próximas horas e que ele queria chegar à Ilha antes dele desabar. Não tive tempo de raciocinar a atitude que eu estava tomando em sair apressado atrás daquele amigo e quando vi, eu já estava dentro do barco, agora com o cais a 50 metros de mim e ficando cada vez mais longe. Olhei para o céu e não vi nada que pudesse parecer que o tempo iria mudar, até o vento tinha cessado. Acomodei-me no pequeno espaço do convés e como de costume fiz o sinal da cruz, depois de molhar a ponta dos dedos na água do mar
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Num toc, toc, contínuo do motor, Mangaratiba foi ficando para trás e a Ilha Grande parecia que não se aproximava nunca. Foi então que percebi que alguma coisa estava por acontecer. Vi surgir por de trás da ilha uma imensa muralha de nuvens que não tinha fim. Fui até a cabina, que só cabia o barqueiro, perguntar a ele o que achava daquilo. Imediatamente ele mandou que eu pegasse a mochila e ficasse ali com ele, pois íamos enfrentar mar revolto. Procurei imediatamente por um salva-vidas e fui informado que não tinha. Só uma bóia de isopor que estava amarrada na lateral do barco. Fui até lá a apanhei trazendo-a para dentro da cabina. O sorriso do barqueiro me deixou tranqüilo por algum momento, pois demonstrou que ele já estava acostumado a enfrentar situações adversas.
Estranhamente, naquele momento o mar estava sereno e nenhum sinal de vento. Mas não demorou muito e o sol sumiu atrás dos imensos cogumelos brancos que ficaram cinza deixando à tarde com aparência de noite. O vento chegou em rajadas que crispava a água e lançava respingos doloridos. Raios para todos os lados; alguns pareciam subir da Ilha para o céu, outros ribombavam no momento da faísca e deixavam um sinistro cheiro de alho no ar. O Oxigênio, depois de fritado pelo raio, transforma-se em Ozônio o qual tem mais ou menos esse cheiro. Não demorou muito as ondas começaram a ficar cada vez mais altas e por vezes a Ilha Grande sumia quando o minúsculo barco se encontrava no fundo, entre as duas paredes de água – a que passou e a que vinha. Meu estômago virou um iô-iô até que um incidente me encharcou de adrenalina e eu esqueci o enjôo.
O barco não conseguia mais enfrentar as ondas e por diversas vezes quase ficou de lado correndo o risco de naufragar. O barqueiro, que não parava de girar o timão para todos os lados, olhou pela janela redonda e constatou que a âncora havia se soltado e que estava no fundo travando o barco. Acabou sobrando para mim, que a muito custo fui rastejando e me agarrando a tudo que podia até alcançar a corda. Logo percebi que não seria fácil, parecia que a âncora estava agarrada de tão pesada e dependendo se o barco estivesse descendo ou subindo uma onda, ela ficava mudando de direção. Consegui fazer um laço na corda e enfiei nele o meu braço para eu não ser lançado fora do barco. Ao mesmo tempo fiquei preocupado se ele virasse e eu ficasse preso a ele. Aos poucos a âncora foi subindo até que consegui içá-la para o convés. Amarrei-a com certo exagero para que não mais se soltasse e voltei para a cabina sob uma torrencial chuva e ondas de dar inveja ao Havaí.
O barco voltou a seguir valente subindo e descendo ondas, embora sem rumo certo, pois não se enxergava um palmo à frente e não tinha bússola. Parecia que era noite e só conseguíamos enxergar a silhueta da Ilha quando um raio acendia. Por fim, depois de duas horas e meia de travessia milagrosamente entramos pela boca do Saco do Céu depois de cruzarmos com a barca que saiu de Angra. Já em águas mais tranqüilas, pisei nas areias da praia do Galo com a sensação de ter saído de uma montanha russa infindável.
O pior parecia que já tinha passado, pois a chuva diminuiu e já dava para se ver a paisagem. Depois de muito elogiar a bravura do barqueiro e me condenar por ter entrado na pilha dele para navegarmos antes do temporal, sai caminhando como um frango molhado na direção do Abraão. A sede era tanta, que bebi da primeira água que encontrei.
Quase não consegui passar pelo Rio Perequê de tão cheio, e pelas marcas da água nas margens dava para ver que o volume já tinha sido o dobro. Agora, totalmente molhado e com o queixo tremendo de forma incontrolável, segui pela praia de Fora e me apavorei de vez. Não tinha praia, era tudo água e com ondas. Ao chegar à praia do Camiranga a mesma coisa. Atravessar o rio Camiranga com pororoca nunca me aconteceu. Pensei no Rio da Feiticeira mais à frente, que se estivesse cheio assim, seria impossível atravessá-lo. A noite chegou.
Depois de subir escadaria que parecia cascata, cheguei na trilha que mais parecia riacho. Pelo som do rio que descia no fundo da mata à esquerda, dava para imaginar o sufoco que iria ser atravessá-lo mais acima. A trilha ficou escura e precisei quase que esvaziar a mochila para apanhar a lanterna, que por não contar em usá-la, coloquei-a no fundo.
Aproveitando que tinha tirado boa parte da roupa para fora, troquei as molhadas por secas, pois o frio já estava ficando insuportável. Não adiantou nada, pois a chuva voltou com força. Tratei de acelerar o passo na direção de um som de cachoeira cada vez mais próximo e receoso de que uma cabeça d'água pudesse estar se formando no rio da Feiticeira. Uma pedra redonda, lisa e submersa me atirou de cara na lama sem dar tempo de salvar a lanterna que ficou em pedaços e levados pela água trilha a baixo. Na tentativa de acender o isqueiro, ele se molhou e não acendeu mais. Eu estava literalmente no mato sem cachorro e o único jeito de escapar com vida era ficar onde eu estava e esperar o dia clarear. Em meio a um céu cadente de pirilampos, um deles ficou agarrado em meu casaco de lã e pude perceber que sua luz era tão forte, que dois deles daria para iluminar de verde o caminho. Era uma espécie de vaga-lume, que ao invés de piscar o traseiro, tinha os olhos acesos como dois faróis. Tentei em vão apanhar mais dessas luzes errantes, mas era difícil ficar em pé na trilha. Aos poucos minha visão foi se habituando ao escuro e dava para distinguir o que era caminho e o que era grota.
O barulho do rio era próximo, mas nunca chegava. Nisso, um vulto branco começou a se aproximar e fiquei petrificado por alguns segundos até que gritei: ÔÔÔPA!!! A mancha branca parou e seja lá o que fosse, tinha olhos, pois de relance pude perceber o brilho. “QUEM ESTÁ AÍ?” E a coisa continuava parada. Nisso, um raio passou perto e um flash de luz me mostrou quem era o fantasma que além do frio, me arrepiava a alma. Tratava-se de um cão andarilho, desses que costumam seguir os trilheiros de praia em praia. Alguns, até são adotados por eles, Quanto ao meu cão, estalei os dedos e emiti com a boca o som universal de chamada de cães e ele se aproximou. Aceitou meu carinho e me sujou mais ainda quando ficou em pé apoiado em mim. Depois de muitos afagos e amizade selada, ele espontaneamente começou a caminhar de volta e eu o segui. De tão branco, era a única luz que eu enxergava.
